terça-feira, dezembro 15, 2009

Conto: Enquanto a vida solta um suspiro

Nobody loves me, is true. A música paira nos meus ouvidos, a voz da Beth Gibbons adoça esta triste constatação

Percorro a calçada do Príncipe Real, encontro-te submersa numa vitrina que espelha Lisboa em palavras.

Olho-te por essa janela indiscreta onde repousa uma garrafa de vinho vazia sobre a mesa, e as tuas mãos que beliscam a caneta. Questiono-me o que estarás tu a escrever?! As memórias sobre o Tejo num intenso véu vespertino?

Vagueio na imagem que me prendeu o olhar solto na mulher dos lábios vermelhos.

A tua beleza é refém desta mostra de vidro que nos separa.

Imagino de que cor será o traço das linhas divergentes, na criação da senda dos teus sonhos.

Julgo-me incapaz de absorver tamanha beleza. Trindade responde ela ao meu chamado.

Só eu a vejo, como se uma tela a cheirar a fresco ponteando a frescura bucólica da manhã.

Deixo-lhe recados sobre a mesa quando se ausenta para almoçar, escritos de Al Berto que se estendem nas paredes.

Não lhe dou pistas de quem eu sou, retraio-me na minha morada abraço a continuidade do meu refúgio.

Hoje remeto-lhe o seguinte enigma: “Em Nome da Rosa. Encontrarás a luz que tanto anseias. No retardar da recolha da noite procura a esquadria.”

Destacando cada palavra que lhe deixei, começa a analisar estas, e conjuga-as de forma a se descodificarem em algo físico.

- Hum, ‘Em Nome da Rosa’, parece-me ser o meeting point – pensa Trindade em voz falta franzindo o sobrolho.

- Luz, símbolo alegórico de conhecimento e de iniciação.

-E por último, a esquadria que se reporta para um instrumento: o esquadro. – Ora bem, o esquadro poderá ser um ícone indicativo do espaço onde me parece ser o meeting point.

Trindade começa a questionar-se o porquê deste enigma, fazendo relações hipotéticas com a sua pessoa.

Os dias fazem-se distantes e soturnos, o frio embarga a cidade iluminada, Trindade prepara-se para o fim-de-semana que se adivinha. Sexta-feira 13.

Trindade formou-se em Peritagem de Arte para continuar o negócio de alfarrabistas e antiguidades de família. Cronista e jornalista. Regressa a Lisboa, sua cidade natal, após quatro anos de ausência.

Hoje faz trinta e três anos, preparei-lhe uma surpresa silenciosa. Espreito-a sobre a esquina escondida, desejando-a como amante para o resto da vida. A sua tez pálida contrasta com o olhar adornado pelo rímel, esvoaçando as pestanas que a trariam até mim.

À sua porta, ela repara que lhe deixei mais um enigma, o último: À entrada do templo, néofita vê a luz. O sol impera sob a esfinge, ao subir da lua, o triângulo completará o seu terceiro elemento.

Estas mensagens passam a ser óbvias para Trindade, no entanto, ela não sabe quem a irá receber.

Ignorando o significado destas mensagens secretas, parte para o Bairro Alto. Sobre a alçada dos trilhos outrora percorridos, este bairro transpira Trindade. As entradas das portas desconhecidas eram o seu sofá. Deleitando-se a observar as gentes animadas de copo em copo a percorrer rua acima, rua abaixo, a discoteca bairrista, tornava-se um poço sem fundo de histórias vividas.

Os seus amigos estranharam o seu olhar ausente. Algo a perturbava, as mensagens tilintavam na sua cabeça. A curiosidade apodera-se dela, e decide ir ao encontro do seu mensageiro.

- Lamento a minha ausência mas a lua não espera por mim, diz Trindade aos seus amigos.

Trindade sabe onde dirigir-se, à rua do Grémio Lusitano. O templo aguarda pela sua chegada.

À entrada do templo reconhece o esquadro na porta, que integrava o escrito do primeiro enigma. Surjo-lhe. Esboça uma expressão atónita de quem não estava a espera que fosse eu o seu emissário secreto.

Trindade e eu, não vivemos um romance, mas aspirámos os mesmos ideais e valores, que se compreendiam na nossa existência.

Conhecemo-nos antes da sua viagem para Atenas, onde residiu durante quatro anos. A sua partida inesperada, ressequiu os laivos da paixão que em nós se romperam a cada instante partilhado num olhar.

- Gonçalo! Mas… não entendo…

- Calma Trindade.

O seu discurso hesitante e perplexo deixou de o ser quando lhe pego na mão, e entramos no templo.

Afinal os desejos mantinham-se e o que nos unia será sempre o elo que nos fará caminhar na mesma direcção.

Fui o responsável de introduzir Trindade na luz que ela tanto esperava alcançar, a noviça fez-se entrar no templo.

Daqui em diante seguiremos rumos convergentes, embora sobre os mesmos princípios, ela será acolhida no seio feminino.

Afinal, foram beijos perdidos. Enquanto a vida se refaz num breve suspiro, retira o fôlego daquele que provou um instante teu.





16 comentários:

João Gil disse...

http://mmeloup.wordpress.com/

A nova actualização.

Pearl disse...

Lindissimo...


beijos

Summerparis disse...

Obrigada, Perl :)

Foi um texto que me deu imenso gozo de escreve-lo.

Ps: Ocorreu-me inspiração enquanto ouvia Portishead, a cozinhar umas batatas e brócolos para o jantar. xD

Um beijo

Zé das Cricas disse...

Um bom conto é sempre bom...

O_T_P_S_P_ disse...

o prazer com que o escreves-te é notório.

Anônimo disse...

É bom revisitar este espaço e continuar a ser brindado com o doce sabor das tuas palavras...
Mais um dia extenuante de trabalho...mas depois desta incursão a um imaginário que me é tão próximo (e com o winamp a passar Portishead sabe ainda melhor), encontro a leveza de espírito para encarar o que vier com a simplicidade que merece...

Kisses,
Marques

Summerparis disse...

Zé das Cricas,
Um conto pode-se tornar bom, quando este é escrito com prazer :)

Summerparis disse...

O_T_P_S_P_,

A escrita só faz sentido se esta for feita de forma prazenteira, em que as imagens que se vão delineando pela imaginação ressurge na palavra.

Summerparis disse...

A viagem pela vivências que partilhamos em comum, confere uma acomodação deliciosa, esboçando um sorriso, ou simplesmente uma lembrança que se pensava em vão, fez-se cintilar no rejubilo da memória.

Moon_T disse...

Gostei.
Gostei de ver como consideras arriscar saindo de ti, do teu tempo e do teu espaço e ver-te de fora para dentro. Gostei de ver o teu desafio para ti.
O toque de Portishead, subtil e amargo... à moda de Portishead mesmo.

Este é um daqueles Posts feitos para serem lidos e não. como a grande maioria das blogosfera faz, para serem passados de relance. Gostei de quase tudo. Digo quase porque, e como acho que o que se faz merece criticas verdadeiras e não apenas palmadinhas nas costas, não gostei da escolha do nome "Freya". Achei o Post o relato envolvido de realidade ao que, ao dar o nome de uma deusa me afastou dessa realidade. Pode ter sido propositado da tua parte, mas mesmo assim, gostando deste post, não gostei desse pormenor.
Não obstante, parabens por mais um post muito! É sempre um prazer por aqui passar.

Cumprimentos

Laetitia disse...

Este post está fantástico.Parabéns.:)

Desalinhado disse...

delicioso :)

Pedro disse...

Adoro uma pessoa que anda e enquanto anda pensa nas músicas que ouve!!!


beijos

Leo Curcino disse...

gostei tanto disso. pena que parece que foi o último.

escreva mais.

Summerparis disse...

Leo, não foi o último, mas de momento, ando sem vontade para escrever. Obrigada pelo incentivo :)

TTV disse...

Gostei, mas vamos ter muito que falar... :)